domingo, 9 de outubro de 2011

caian

E viu brilhar dourado, no meio do entulho entre as fundações da casa.

Só o que sobrara era a pedra coberta de musgo, o mato crescendo onde outrora haviam cômodos, aquela terra preta característica. No chão o contorno bem definido das paredes externas, as divisões dos cômodos. Como canteiros de um jardim, onde só se via as folhagens de um mato rasteiro não identificado, por entre restos de construção abandonados ao tempo. Havia chovido muito na véspera. Quase desistira do passeio. Insistiu. Acertou a boa, fez sol. Fez a trilha. Viu a ruína, lavada pela tempestade - a pior das últimas décadas, é o que diziam na vila. E viu brilhar dourado entre os restos da casa - habitação típica da região, colonização alemã, final do século XIX. É o que dizia o panfleto que arrumara, com o mapa das trilhas...

De começo nem cogitou a idéia. Mas quando seus tios insistiram para que usasse o cupom que haviam ganho valendo um feriado no interior, caian se viu aceitando e procurando informações sobre o lugar. cachoeiras, trilha, tinha tudo. Confirmou. Só não contava com a chuva que resolvera cair dois dias antes da viagem. Rios cheios, pontes derrubadas, barreiras caídas. Seus tios ligaram preocupados "vai não caian.", "dá nada não tia!". E foi. Seguro até.

Chovera forte terça, quarta e quinta. Sexta feira o céu amanheceu cinza. Vento parado, nuvens se espalhando. Por volta das quatro da tarde, o nordeste traz uma leve brisa pra tocar o rosto de caian, quando ele atende o telefone. A tia, o pedido, a negativa. O sol encontra uma passagem - primeiro por entre as nuvens, depois por entre os prédios do centro de vitória - e pinta de amarelo o rosto moreno de caian. "fica tranquila tia, o tempo vai firmar, vai dar tudo certo" "vai com deus, meu sobrinho".

Pagando a última conta, quase último cliente a sair do banco na sexta feira. Trânsito engarrafado, fumaça, buzinas... Um milhão de gentes na rua, andando apressado, engarrafando a calçada. "Tranquilo, hoje à noite eu durmo na roça, com barulho de bicho".

"Nem achei que viesse mais! Pode entrar e fica à vontade meu filho, tem um quarto ali em cima pra você" Disse a senhora simpática ao recebê-lo na pousada. Deveras aconchegante. Teto baixo, piso de madeira, e o cheiro tão familiar de um fogão a lenha aceso. "Se quiser ir tomando um banho, a janta já tá quase pronta!"

Banho tomado e agasalhado - fazia frio mas caian vira estrelas no céu, da janela do quarto - desceu pra jantar. Caldo verde... E dois dedinhos de prosa intrigantes com o casal de idade que administrava a pousada "mais uma sobrinha que não gosta mto do trabalho mas já viu né, filho cresce quer ganhar o mundo, deixa nós na mão dos outro". Falaram da região, que já teve seus dias de glória. Café, gado, cacau. "até o trem passava aqui!". Agora só a floresta jovem vicejando, pós falências. De uma hora pra outra, nem uma hortinha mais se fazia. Velha história, depois do café, depois do pasto, o que não virou voçoroca vale mais virando floresta denovo. "é, meu filho, turista dá menos trabalho que qualquer criação."

E subiu pra dormir com a barriga cheia, o pensamento lento, e vários panfletos na mão com roteiros que incluíam cachoeiras, fazendas de ecoturismo, alambiques... Caian dorme decidido a fazer o que lhe aconselhara o velho casal: "sobe aí por cima ó, que vc encontra a estrada antiga. ninguém usa mais não mas ainda dá pra seguir. e vai andando, que passa pelo rio, umas casas antigas, a mata já tá mais crescida em volta, ela vai por um vale por cima desse que vai a estrada nova..."

Levanta cedo, sente frio, mas a luz lá fora confirma o que já sabia. Sol. Entre nuvens, mas sol. O orvalho ainda brilhando nas folhas e flores, os passarinhos em algazarra saudando o dia e o inconfundível cheiro do fogão a lenha. Já aceso. "hmm, cheiro de café"

Café, broa de milho, mentira, cuscuz, bolo de aipim, mamão, banana, jambo, suco de laranja, queijo, requeijão, tudo já em cima da mesa. E uma linda caboquinha preparando a mesa "sou fulana sobrinha dos fulano" "bom dia fulana" "bom dia moço".

Come pouco, até meio triste por ter de escolher em tanta fartura. Guarda umas bananas na mochila, enche o  cantil e vai fazer a trilha. A subida é um tanto íngreme, um morro meio barranco por cima do terreiro da pousada. Mas a estrada velha está ali, perceptível. Cresce bastante mato mas o caminho é nítido. Caian começa a caminhar.

E no caminho, em silêncio vai ouvindo: sabiás cantando, sanhaços e vários outros passarinhos cujo nome não sabe, e cujo canto não associa a imagem alguma. Ouve micos assobiarem. Gaviões cruzarem o céu, ora branco, ora azul. Nas bordas da estrada antiga árvores já grandes percorrem sua jornada em direção ao céu. Umas já estão bem adiantadas. Ás vezes barulho de água. Caian para, quer saber de onde vem. "cachoeira será? tá frio ainda, andar mais um pouco"

E numa das curvas da estrada, se é que ainda podíamos chamar aquela trilha cada vez mais fechada de estrada, a floresta se apresenta. Volumosa, sobre a estrada, subindo morro acima, como se projetasse uma sombra verde por cima do caminho e dos olhos de caian. Árvores enormes, palmeiras, muito verde. E discretamente, mas sem passar pelos olhos argutos do observador, duas filas de árvores, paralelas, destoam do resto da paisagem. Em meio à mata atlântica, vários pinheiros enfileirados, apontando feito lanças para o céu. Seguindo a curva do morro, sem descer como a estrada velha faz. "caminho pra algum lugar" foi o que pensou caian.

E foi pelos pés dos pinheiros, até encontrar uma clareira no mato quase alto. As fundações da casa. O sol saindo entre nuvens pra pintar de amarelo o chão da clareira. Enquanto assistia meio embasbacado a dança dos raios solares varando o verde orvalhado da mata crescida, os olhos de caian se fixam num ponto na ruína. Brilhou dourado. "eu hein"

Foi na direção do brilho. Acocorou-se sobre a fundação da casa, esticou o braço e apanhou o objeto. Não acreditou. Pesado, maltratado pelo tempo, mas meio lavado pela chuva que caíra nos dias anteriores, um moedão de ouro! Pesado, com uma cruz e quatro "M"´s em cada canto, impressos em um dos lados. "puta que pariu, um dobrão de ouro!" "mas peraí... dobrões de ouro são anteriores à vinda dos imigrantes..."